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Canoagem pelo Rio Cristalino

Em caiaque e canoa pelo Rio Cristalino, MT
04/07/2004 a 20/07/2004
          
Dois dias para chegar ao Araguaia, dez para descer o Cristalino e mais dois dias para voltar a São Paulo. Cronologicamente esta é a síntese de uma expedição fantástica que resume dias de preparativos intensos e ansiosos com remadas em águas cristalinas, paisagens incríveis, além de encontros com ariranhas, botos, araras, garças, jacarés, piranhas, cachorras, arraias. Foram momentos atemporais e pessoais de navegação por uma das artérias do coração do Brasil.

As Flotilhas

A expedição foi realizada por duas flotilhas relativamente independentes entre si: uma de São Paulo e outra de Brasília.

A flotilha de São Paulo foi composta de uma canoa canadense e dois caiaques. A tripulação da canoa foi formada por Eurico, naturalista e professor da USP e por Carlos , fotógrafo profissional. Os caiaques foram tripulados por Linilson, engenheiro mecânico, professor da USP e por Álvaro, matemático e professor da Unicamp.

Os 4 em Fio Velazque

A flotilha de Brasília foi formada por quatro canoas, com dois tripulantes cada uma: Edson, empresário; Max, guia da região; José Ermídio, oficial de chancelaria do Itamarati; seu sobrinho Rafael, estudante de engenharia florestal; Rafael, filho do Edson e Carlos, engenheiro de Belo Horizonte.

A Expedição
Prólogo

Quando se dá uma olhada para trás, para analisar as circunstâncias da vida, algumas vezes é difícil não pensar em certas “conspirações do destino” que geram os acontecimentos.
Em dezembro de 2003, fui visitar uma tia na cidade de Cáceres, no MT. Num dos dias fomos conhecer o pequeno museu da cidade e fiquei curioso com um livro antigo exposto numa vitrine. O título era algo como “Expedição para a serra do Roncador” ocorrida em no início do século XX. Estava escrito em italiano por um italiano que participou dessa expedição. Tomei nota dos dados do livro e, quando voltei para São Paulo, procurei nas bibliotecas da USP.  Achei um exemplar traduzido para o português. Relatava uma iniciativa do governo federal para explorar o Brasil Central, muito antes da investida dos irmãos Villas Boas, na década de 40. A expedição partiu de uma vilazinha nas margens do Araguaia seguindo para a direção da serra do Roncador onde nunca chegaram. Voltaram antes, em decorrências de alguns ataques de índios. Mas o que me chamou a atenção foi a menção de um rio que “parecia um verdadeiro aquário” e que “ o nome fazia juz ao rio: Cristalino”. Anotei aquilo, para tentar achar esse rio, e percorrê-lo algum dia.
Em algum momento dos primeiros meses de 2004, estava na raia de canoagem da USP, conversando com um amigo e professor de canoagem da universidade, quando vi passar uma canoa tipo canadense, remada por duas pessoas. Comentei que era uma bela canoa, e que era raro ver, na raia, barcos diferentes das de classe olímpica de caiaque e remo. Meu amigo me informou que era um professor do Instituto de Biociências que estava preparando uma expedição por um rio do Mato Grosso. Quase não acreditei quando ele citou o nome: Cristalino! Imediatamente pedi para me colocar em contato com esse professor.
 Alguns dias depois estávamos combinando, para um final de semana próximo, uma remada em um afluente do rio Itanhaém, com o objetivo de nos conhecermos e trocar ideias. Fiquei sabendo que estavam planejando ir em julho daquele ano. A expedição que, até então, contava com três participantes, ganhou mais um.

No Rio Araguaia


A Remada  

Diz-se que em toda boa viagem, se viaja três vezes: ao prepará-la, ao realizá-la e ao recordá-la. Essa expedição foi ótima nos três aspectos. Este relato é um agradável momento do último aspecto. Não irei comentar sobre todo o período de preparação e planejamento, mas foram três meses especiais. E vamos seguir direto para o relato.

Saída de S. Paulo às 6:30h de 4/7/2004. A bordo Linilson, Eurico e Carlos com a canoa e um caiaque já montados no rack da picape. Parada em Campinas para pegar o Álvaro, caiaque e tralha. Dormida em Goianira, logo após Goiânia. Dia seguinte, de manhãzinha, saída para Fio Velasco, onde chegamos no fim da tarde. De São Paulo a Fio Velasco, base da expedição, são 1.540  km. Asfalto até São Miguel do Araguaia. Terra a partir daí. Uma parada de algumas horas em São Miguel do Araguaia para acertar o transporte das embarcações tanto do pessoal de São Paulo como do de Brasília: um caminhãozinho e um ônibus bastante espartano. A idéia é deixar os carros em Fio Velasco e seguir para o Cristalino nestes transportes.

6/7/2004. Dia para relaxar em Fio Velasco, pousada de pescadores à beira do Araguaia. Dia para remar no Araguaia. Rio imponente, com boa correnteza e belíssimas e enormes praias de areias brancas. Comida muito boa e  pessoal muito simpático na pousada. No fim do dia chega o pessoal de Brasília e, no início da noite, os veículos de transporte. Conseguimos colocar as quatro canoas no caminhãozinho. Os dois caiaques tiveram de entrar no ônibus pela janela mais todas as tralhas. A melhor parte foi tentar encontrar uma maneira de passar dois caiaques de 5 metros pelas janelas do ônibus. Pela porta só dobrando... 

7/7/2004. Saída às 6:00 h para Cocalino e Rio Cristalino. Após uma breve parada para almoçar e pegar o guia do pessoal de Brasília em Cocalino, seguimos para o rio, onde chegamos por volta das 13:30 h.

Aí a excitação do início da remada tomou conta. Rapidamente descarregamos barcos e equipamentos e nos despedimos dos transportes. Começou então a “negociação” entre o volume de equipamentos e volumes disponíveis em cada embarcação. Enquanto o pessoal das canoas simplesmente jogavam as coisas dentro, o povo do caiaque tinha de planejar para ajeitar tudo nos 2 compartimentos estanques, na popa e proa, de cada caiaque. Mesmo assim, é impressionante o volume que esses caiaques podem carregar.
Iniciamos a viagem pelo Rio Cristalino às 14:30 h. Desnecessário mencionar e relatar a excitação que todos sentíamos ...

Coordenadas UTM da saída: 22L 466979; 8428667

O rio é bem estreito no início, tendo até uma cerca de arame farpado atravessando o leito. Às 16:30 parada numa praia de areia para o primeiro acampamento.

Dia 2
 Saída às 8  h. Primeiro dia inteiro de remada no rio. Primeiras pescas: tucunarés e piranhas.
Fisguei meu primeiro tucuna! Como o rendimento do caiaque era bem maior do que as das canoas, acabei ficando na frente. Parei num areial no meio do rio, para tentar a sorte com os peixes. E fisguei meu primeiro tucuna ! E enorme! (era o que eu ainda pensava, no momento) Para quem só tinha pescado lambaris  em riachos, na infância, era uma proeza digna de comemoração. Aguardei, orgulhoso o povo chegar, apenas para ouvir, do Eurico o comentário: “Esse filhotinho aí?! |”. Diga-se de passagem, que eu nunca tinha visto um tucunaré, e somente depois, ao chegar na pousada de pescadores, no fim da viagem, é que vi um cartaz com fotos e dimensões de peixes... Aí entendi os sorrisos indulgentes do pessoal, como o “meu tucunaré”... Tinha um palmo de comprimento!



Primeiro “imenso” tucunaré e as onipresentes piranhas

Peixes e arraias são facilmente vistas no leito do rio.... O nome, de fato, faz jus ao rio!!! Capivaras, jacarés, garças brancas e cinzas, iguanas, tucanos... Aliás, levamos bons sustos com as iguanas. Ficavam tomando sol nas ramadas que se projetavam sobre o rio. Era comum, quando nos aproximávamos, sem vê-las, escutarmos um enorme “tchibum”, seguidos de espirros de águas... elas se ativaram no rio, com nossa aproximação.

Acampamento numa bela praia às 17:00 h, a 40  km do início do trajeto.
 Coordenadas UTM: 22L 468492; 8432217



Dia 3

Saída às 7:30  h. Inúmeros baixios no rio, que impedem o deslocamento de barcos a motor e permitem visualizar os tucanarés, arraias, tartarugas, etc... Praias de areia fina se sucedem. Estas praias são um convite contínuo para relaxar à beira do rio. Realmente é uma bela viagem. O rio ora se estreita a uns poucos metros, hora se alarga a uma ou duas dezenas de metros. Devido à presença de uma estrada de terra, mais ou menos paralela à margem direita do rio, é possível encontrar vários acampamentos familiares nas diversas praias, durante o mês de julho. Coisa curiosa é a ausência de epífitas (bromélias e orquídeas, sobretudo), a não ser um tipo de cactos nos jatobás. Esta ausência irá ocorrer ao longo de todo o rio.

Parada para acampar às 17:15 h, tendo sido feitos 77 km desde o início, a uma velocidade média de 5,7  km/h. Noite límpida, céu estreladíssimo. Deu até para confundir a Via Láctea com nuvens! Jantar servido com piranhas e tucunarés grelhados na fogueira.

Coordenadas UTM: 22L 0478854; 8472356

Dia 4

Saída 7:45h. Troca de posições entre o Carlos e o Linilson. O Carlos foi para o caiaque e o Linilson para a proa da canoa.

Este dia e o próximo serão dominados pelas belas gincanas. Uso essa palavra para denominar trechos do rio estreitos e muito sinuosos, com uma certa correnteza, tendo margens com mata fechada, com presença de buritis. É a parte mais bonita da viagem. Devido às curvas acentuadas e presença de galhadas no leito do rio, é fácil se enroscar. Como o rio não é fundo, não é uma situação muito crítica.

Parada para acampamento às 16:30 h, tendo sido percorridos 115 km desde o início e 38 km neste dia. A preocupação, ao relaxar ao entrar no rio para um banho é sempre com as arraias. AS piranhas não são, absolutamente nenhum problema, mas sabíamos dos riscos de levar uma ferroada das arraias. Dores fortíssimas por dias. Mas esses peixes são ariscos. Basta entrar na água fazendo barulho que eles vão embora. E, para garantir, entrarmos sempre arrastando o pé, para não pisar em nenhuma. Céu límpido, dominado pelas constelações do Escorpião, Cruzeiro do Sul e Centauro.

Coordenadas UTM: 22l 0488126; 8487662




Dia 5

Chuva durante a noite. Saída às 7:45 h.

Mais um dia com várias gincanas, com densa e bonita mata nas margens e buritis, araras e jacutingas aos montes. Teve início a ocorrência de uma espécie de esponja de água doce, raras e das poucas espécies existentes no mundo. É fácil vê-las nas margens, logo acima da superfícies do rio, na zona de alagamento.

Parada para acampamento às 4:35  h, tendo sido feitos 158 km desde o início e 43 km no dia. Belíssima conjunção Lua minguante e Vênus. E mais peixe no jantar.

Coordenadas UTM: 22L 0495757; 8509782

Dia 6



Saída às 7:45. Dia com rio largo, raso, com correnteza e transparente. Aparecimento dos primeiros pintados, juntos aos tucunarés e arraias. Começou a ventar forte “contra”, o que acabou gerando ondas no rio, difícil de remar. Em vários momentos sentimos  um perfume adocicado, parecendo jasmim, vindo das margens. Vem de  uma espécie de trepadeira que está em flor sobre as árvores nessa época.

Neste dia Eurico foi para caiaque e Linilson para a proa da canoa. Ocorrência de botos, e curiangos no entardecer. Primeiro grande ataque de pernilongos no entardecer. Ao contrário do que se pensava, os mosquitos só foram problema em alguns dias e, mesmo assim, somente no entardecer e no amanhecer. Bastou se proteger um pouco para ficar livre das picadas.

Foram pescadas as primeiras cachorras, impressionantes pelos seus dois enormes dentes. É incrível o ataque das piranhas às cachorras durante a fisgada e o recolhimento do peixe.

Parada para acampar às 16:30, tendo sido percorridos 199 km desde o início e 41 km no dia.

Coordenadas UTM: 22L 0512502; 8528128

que praia !!

Dia 7

Saída 7:30.
Rio largo, muito vento e pequenas ondas. Barrancos altos nas margens, com alternância de campos e cerrados e alguma mata mais fechada.
Na coordenada UTM 22L 515300; 8539591, chegamos à balsa do Cristalino no meio do dia, e ao bar do Zeca, com suas apreciadas cervejas. No Rio Araguaia, na altura de Luiz Alves, existe uma balsa para atravessar o rio. Na outra margem tem uma estrada que vai dar no Cristalino, neste ponto. É uma opção para saída de uma futura expedição. Um pouco antes da chegada à balsa existem vários acampamentos na praia, de famílias em férias. Lá pela 14:00  h retomamos a viagem, pois o objetivo era chegar até à foz, no Araguaia.

Acampamos às 16:30, tendo sido feitos 241 km desde o início e 42 km no dia. A praia fica em frente à sede da fazenda Pinheiro. A casa da sede é rodeada por babaçus, que no entardecer estavam coalhados de periquitos, tecelões, pássaros pretos, numa algazarra incrível! O anoitecer olhando a fazenda foi lindo: a praia, o rio, os babaçus, iluminados pelos tons alaranjados do entardecer, embalados pela orquestra dos pássaros ...!

Coordenadas UTM: 22L 0518006; 8548476

Dia 8

Saída 7:30.
Novamente muito vento contra, com formação de pequenas ondas. O rio se alarga e quase não tem correnteza, o que implica em que as horas de remada começam a ficar mais longas que as do início da viagem... Nas duas margens a mata fechada começa a predominar.

Acampamos às 16:30 h, tendo sido percorridos 280 km desde o início e 39 km no dia.

Coordenadas UTM: 22L 0518976; 8571524

Dia 9

Saída: 7:00h.
A noite foi passada numa praia que tinha ninhos de uma espécie de gaivotas. Elas não gostaram nem um pouco da invasão e ficaram piando a noite inteira. O Carlos levou uma leve bicada na cabeça, num dos rasantes que esses pássaros davam. Difícil dormir. Belo nascer do Sol, com a Lua minguante nos seus últimos momentos: um último pedaço de brilho, contrapondo com o resto imerso nas sombras ainda visíveis. O rio é largo, com mata alagável dos dois lados. Houve trecho de baixios em que foi necessário descer e puxar os caiaques e canoas. Os botos apareceram diversas vezes. Com a proximidade do ponto de chegada, houve uma tentativa de queimar esta última etapa neste mesmo dia e chegar no início da noite na Pousada Cristalino. Batemos o recorde de distância percorrida num dia: 49 km! Mas com o anoitecer chegando, a prudência nos levou a armar um último acampamento. Estamos entrando na área de lagos e corixos do final do Cristalino, muito procurados por pescadores do país e do exterior.

Acampamento às 16:35 h, tendo sido feitos 329 km desde o início e 49 km no dia.

Coordenadas UTM: 22L 0529150; 8592572

Dia 10


Saída 7:10 h.
A animação e a descontração começam a tomar conta do pessoal com a perspectiva da chegada à Pousada Cristalino, quase na foz do rio no Araguaia. O rio estreita um pouco, tendo matas alagadas em ambas as margens. Existem várias lagoas que se conectam ao rio. É um mini Pantanal. Várias voadeiras passam com pescadores que se hospedam nas duas ou três pousadas que estão neste trecho, perto da foz.

Chegamos à Pousada Cristalino às 8:30 h, tendo percorrido 338 km desde o início e 9 km no dia.

Coordenadas UTM: 22L 0532513; 8598944

O resto da manhã foi dedicado a relaxar, celebrar o fim da expedição e ajeitar a tralha. Tivemos um excelente almoço, feito pela mulher do seu Valdir, gerente da pousada, com direito, entre outras coisas, a pirarucu e tartaruga. O fato exótico foram os mutuns que eram criados como se fossem galinhas. Os machos são belíssimos. Após arrumar as canoas e caiaques no canoão a motor da pousada, saímos às 12:15 h rumo à Pousada Fio Velasco à montante no Araguaia. O Rio Araguaia é um mundão de água,  com praias imensas nesta época do ano.


Chegada a Fio Velasco às 19:30 h, tendo sido percorridos 401km desde o início da travessia.

Os dois dias seguintes foram ocupados em voltar para São Paulo. Vale a pena parar na cidade de Goiás Velho por dois motivos. O primeiro é pela cidade em si, muito bonita no seu estilo antigo, colonial. É a cidade de Cora Coralina, poeta que começou a escrever suas poesias já aos 60-70 anos de vida. Belos poemas! O segundo é para almoçar no Restaurante Flor do Ipê, atrás da Igreja Matriz. Muito simpático, acolhedor, com ótima comida goiana.

Dentre todos os rios que já percorri pelo Brasil (em São Paulo, no Brasil Central, na Amazônia) esse, sem dúvida, está no topo da lista.

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